Sem a mínima precisão de semântica
Por vezes penso o que é que venho aqui fazer todos os dias? Enquanto empurro a merda do portão que todos os dias se queixa de ser aberto. Preparo o meu sorriso já de plástico para quem quer que veja ao entrar, o sorriso que preparo todas as manhãs ao espelho da casa de banho antes de entrar no duche. Chego sempre a tempo de ouvir as lamúrias do vizinho do lado, encolho os ombros, abano com a cabeça e dou uma resposta sem a mínima precisão semântica. Chove?
Por vezes penso mas afinal que faço de tão especial aqui? Dirijo-me para a minha secretária, enquanto atravesso o corredor encontro um colega a quem cedo um aperto de mão cordialíssimo e o sorriso já programado. Sempre demasiado atempado. Antes de me afundar no cadeirão, com um cheiro a pele rasca, ainda tenho tempo de enfiar a cabeça no túnel de segredinhos e mal dizer que sobrevoa como uma nuvem escura aquela sala do posto de comandos. Demasiado pesado. Ainda a tempo de preparar a minha íris, tal qual os violinos aguardando o arranque do mestre, para mais um dia de fuinha em frente ao computador.
Por vezes penso, mesmo antes de começar a roer as unhas, na lógica de todas as reuniões? Mesmo antes de me debruçar sobre os assuntos cujos conteúdos nunca relato a ninguém, ordens da direcção, senão á estátua que fica do outro lado da janela mesmo por cima da minha cabeça. Costumo andar ás voltas na cadeira a tentar perceber se algum dia chegarei a entrar na órbita do cimento que me rodeia e todos os dias reparo que o parapeito da minha janela mais uma vez foi esquecido pelas empregadas de limpeza. Será que faço parte de um sistema novo de munições onde o excesso faz rebentar?
Quando começa a época da chuva? Será que nunca chove?
Talvez quando chover possa limpar do meu couro cabeludo estes pensamento que me absorvem e consomem todos os dias, talvez consiga dissipar tudo o que há de mal em mim e consiga ver para além do muro que existe há minha volta. Talvez depois consiga abrir o portão sem ele fazer barulho e passar despercebido por todos sem ter que ouvir os mexericos a furarem-me o tímpanos todas as manhãs. Vou tentar abstrair-me dos comentários de toda aquela gente que não consegue estar satisfeita com o seu trabalho, com os seus chefes, com tudo o que fazem na vida medíocre que levam e falam pela calada.
Só quando chover vou poder deitar fora todos os meus casacos escuros e chapéus de varetas partidas, quebradas por tácticas de olhares e ritmos vocais que consumo diariamente sem pedir. Talvez até deixe de fumar e apagar este rasto de fumo que os faz chegar sempre a mim. Só quando chover vou poder estar apto a ver o céu sem nuvens e conseguir vislumbrar as estrelas que nele pairam.
Mas, até lá vou continuar a praticar o meu sorriso de plástico, abrir o portão que teima em ranger, a ouvir a voz estridente do meu vizinho e perguntar sem a mínima precisão semântica, chove?